3º Lugar - "A estátua", de Cecília de Souza Borba.
A Estátua
Ó, estátua sem vida!
Quem habita em tua
negrura?
Não sei onde acho a
saída
Para esta minha
amargura
Ó, estátua sem alma
Quem habita em tua
dimensão?
Estou sem paz e sem
calma
Perdida nesta solidão
Quem habita em ti?
Ó, estátua negra e
fulgurosa
Tu és a única a me
ouvir
Nestes momentos de
depressão
Mas como?
Se não podes chorar e
nem sorrir
Não tens nem mesmo um
coração
Mesmo assim eu
desabafo
Tu és minha única
companheira
No caminho dos meus
passos
Tu és minha amiga
verdadeira
Não me inveja
Não me agride
Estás sempre em
prontidão
Para que quando eu
precisar,
Possa abrir meu
coração
CONTOS:
3º Lugar -
"Branco para todos os dias", de Andréia Alves Pires.
Branco para todos os dias
Cinza
o dia do outro lado da janela. E úmido. Há mais de cinco horas chovia sem
trégua e Elisa não cansava de olhar as gotas despencando do céu e formando
poças na grama do pátio. A mulher concentrava-se nas gotas caindo, dedicava-se
obsessivamente a acompanhar o trajeto da água, pois assim, bastante ocupada,
não permitia brechas para lembrar. As vezes, raios desenhavam riscos no alto da
tarde e quase conseguiam desviar a atenção de Elisa, que experimentava jeitos
de conter o vazio, de antecipar e contornar os estragos que recordar tem o
poder de fazer. Ela queria o espaço em branco por dentro. Branquíssimo. O
branco tem um peso, sabia bem, capaz de sufocar e preencher o buraco sem fim
que havia se espalhado pelo pensamento, pelo sangue, pela pele.
Como
todos os dias, desde aquele domingo de outubro, Elisa esperava. Esperava o
tempo passar, esperava reaver uma força sua que se perdeu em algum momento
entre as cobertas quentes pela manhã e o desalento no fim da noite, esperava
alguma forma de reencontro, uma compensação, esperava compreender a distância
entre a presença e a ausência. Do que é feita essa dor que se instalou em mim?,
não cansava de questionar. Queria dar o próximo passo, mas não conseguia
afastar-se da janela, das gotas de chuva, não sabia mais como respirar fundo e
arejar o peito, estava paralisada diante da vidraça.
*****
O
domingo já ia longe, mas eles deixavam-se ficar na cama como se o mundo inteiro
fosse aquela dimensão entre lençóis azuis e travesseiros estampados. Nus,
estendidos um ao lado do outro, o vão curto entre os braços e as pernas dele e
dela eram fronteira. De um lado, pensava ela na vida, no tempo, no encontro com
aquele homem bom e honesto. De outro, ele pensava no fim, na brisa, na companhia
daquela mulher segura e bonita. Pensavam, pensavam e sentiam crescer por dentro
da barriga e subir pela garganta um calor conhecido, uma vontade de permanecer.
No outro. Pelo outro. Com o outro. Para o que imaginavam ser o sempre.
Ela
voltou-se para ele, passou a mão pelos próprios cabelos e os ajeitou atrás da
orelha, sorriu antes de acarinhar a testa do companheiro, o nariz, a boca, as
bochechas do companheiro. Curvou-se sobre ele e o beijou com o beijo de todos
os dias, demorado e verde. Havia nos olhos dele uma tristeza de vidro que não
tinha coragem de explicar nem a si mesmo. Ela percebeu, mas não quis perguntar.
Ele compartilhou o beijo de todos os dias como quem vai embora de casa para
jamais voltar.
Fizeram
amor. Não o de todos os dias, mas o de um domingo em particular, com o cuidado
e a destreza dos alpinistas experientes. Escalaram os corpos um do outro,
subindo, descendo, explorando montanhas familiares com exatidão. E havia uma
atmosfera de fim de festa. Não comentavam, mas sentiam-se arrumando malas.
Deitados
nus, agora um sobre o outro, ele com o rosto no peito dela, arriscou: lembro de
acordar no meio da madrugada para ficar olhando a tua barriga crescer, na nossa
gravidez do João. Não respirava mais fundo para não te acordar, chegava com a
boca bem perto do teu umbigo e dizia lá para dentro, aos sussurros, que João
não se preocupasse, pois seria feliz desde o primeiro choro. Contei ao nosso
menino que o amor que a gente tinha era inteiro, que havia vindo não sei de
onde, mas que estava aqui quando chegamos e que... mergulhamos. Disse que a
vida era assim cheia de mergulhos, para cima e para baixo, para os lados, e que
valia a pena encarar todas as marés, porque vir à tona era encostar em ti.
Disse que ele viesse sem medo, que a rua era perigosa, mas que a nossa casa
seria sempre garantia e riso frouxo. Que viesse logo para ver o teu rosto e o
meu, tão testemunhas de que existir é uma viagem infinita. Eu fiz isso.
Eu
ouvia, ela disse. Muitas noites despertei com teus sussurros e o bafo úmido
perto da minha pele. No início ficava assustada e curiosa com o teu jeito.
Depois passei a esperar que confissões tu farias. Chegaste a contar uma
história inventada de elefantes no supermercado. E para a minha barriga! Fez
efeito, sabes? Até hoje o João procura as tuas palavras, nos almoços de fim de
semana faz questão de estimular a tua memória, dá corda para os teus causos. É
que a tua voz é mesmo música. Eu também caí nos teus contos... Noutros tempos
tu cantavas embaixo da janela do sobrado onde morei, te recordas? Meu pai
queria jogar em ti o xixi madrugado do penico toda vez que arranhavas "uma
marca" no violão. Sempre a mesma música, né? Teria me apaixonado por ti
mesmo se fosses mudo e se não tivesses o mínimo talento para a música. Teria.
Seguiu-se
à conversa um longo silêncio repleto de fragmentos de história repartida. Ele
acomodou-se sobre ela de forma a cobrir por completo o corpo da companheira,
feito jogo de encaixe. Encostaram-se as pontas dos narizes e não ousaram dizer
palavra alguma. Nos rostos de um e de outro havia o desenho de inúmeros
caminhos, trilhas ao redor dos lábios e dos olhos, corredores estreitos e
profundos escavados de repente pelo vento: em um dia não existiam e no outro
estavam lá, irremediáveis. Sinto a tua falta com o mesmo desespero dos
primeiros dias, ela confessou sem desviar os olhos dos dele. Correu o rosto
para o vão do ombro da amada e respondeu com voz tremida, não quero ir, quero
ficar contigo como todos os dias.
Primeiro
surpresa, logo penalizada, ela segurou a cabeça do marido com as mãos em
concha. Havia deslizado para fora do corpo dele e agora se ajoelhava ao redor
daquele homem encolhido, repetindo baixinho que ele não iria a parte alguma
sozinho, que estariam juntos até o fim. Antônio chorou. Chorou, inconsolável,
nas mãos da esposa até adormecer. Elisa não entendia o pranto do marido. Nos
últimos 42 anos havia visto o esposo chorar apenas três vezes e de forma muito
discreta: em 1970, quando o filho do casal nasceu, quando perdeu os pais no
acidente de automóvel em 1978, e na formatura do João em arquitetura há dez
anos. Não que Antônio fosse um homem frio. Não era. Aprendera a ser comedido, a
sentir as coisas do mundo sem transbordar, aprendera a ser equilíbrio.
Elisa
perdia-se em interrogações quando Antônio acordou num pulo, sobressaltado. Ah,
tive um sonho horrível Elisa, horrível. Estava exausto, preso em uma masmorra
escura e fria, sozinho e com fome. Vi corpos pelo chão, gritei socorro,
implorei ajuda e não apareceu uma alma para me tirar dali. Então entraram
quatro homens vestidos de um jeito estranho, como os atores naquele filme de
gladiadores, sabes? Esses homens não sorriam, não falavam, não estavam lá de
verdade... Eles riam de mim e me jogavam pedras. Chegavam perto e gritavam
barbaridades, que eu não valia a areia do chão, que eu jamais veria luz
novamente, que eu era fraco e imundo, que eu morreria devagar, que perderia os
pedaços até que pudesse ver o meu corpo pelo avesso. Eu tinha tantas feridas.
Me sinto amarrado lá ainda, junto com o fedor, com o escuro, sozinho.
Estava
magro o Antônio, os ossos do peito bem marcados sob a pele clara. Noutras
épocas costumava gabar-se para as visitas das dobrinhas na parte de trás do
pescoço, isso dá um mocotó de luxo, fazia graça, forçando o relevo abaixo da
nuca. Elisa aconchegou o marido num abraço apertado, pediu que respirasse
fundo, que ele estava bem ali na cama macia, que pesadelos são só sonhos
inconvenientes, que não se impressionasse, toma aqui o teu remédio, querido. O
marido abandonava-se no colo da mulher feito criança pequena, ingeriu os
comprimidos sem protestar, um, dois, três, quatro bolinhas, tamanhos e cores
diversas, um gole de água nos intervalos. Será que nunca mais vou dormir um
sono cheio? Claro que vais, Tonho. Esquece isso e vamos conversar.
Elisa
tentava bater papo, mudar a energia do marido que parecia mesmo impressionado
com o sonho ruim. Banho juntos, que tal? Antônio ameaçou um sim com a cabeça e
o meio sinal bastou para que sua companheira saltasse da cama e o conduzisse ao
chuveiro. Era uma pluma, o Antônio. Um pingo de chuva na vidraça que o sopro
faz mudar de rota. E Elisa assoprava o marido, ao redor dos ouvidos, tentando
produzir as reações habituais, certeiras. Havia decifrado tanto daquele
corpo... sabia bem o seu próprio, mas aquele corpo tinha gosto especial em
tatear, ainda. Havia visto o tecido que o cobria mudar de texturas e de odores,
acompanhou marcas que apareceram, sumiram, tornaram a aparecer. Ultimamente ele
se queixava de muitas dores: na cabeça, no estômago, nas costas principalmente.
Nos últimos meses ele tinha muitas aftas, redondas e ardidas, tinha pontos
mínimos na língua e também grandes ulcerações, ilhas brancas, um arquipélago
particular sob o céu da boca.
Ela
ligou o chuveiro. Sorriu para o homem grisalho a sua frente, que lhe sorriu de
volta. Os cabelos cinza escorriam pela testa de Antônio, que outra vez se
deixava levar. Elisa ensaboou, massageou, fez cócegas na cintura do marido,
esfregou-se nele, experimentou penteados com xampu, riscou corações em espuma
nos braços do companheiro, disse que o queria bem, o queria perto, completo,
fundo, já. A água descia ombros abaixo em direção ao ralo enquanto eles faziam
amor.
Antônio
passou mal ao enxugar-se. Frio, dor aguda na cabeça, náusea, pernas trêmulas. A
vertigem e o piso gelado. Elisa correu a reanimar o marido, sua toalha
esquecida no chão do box, acorda querido, por favor, abre os olhos. Nada.
Nenhuma reação. Segundos eternos e Elisa chorava sacudindo o marido, gritava
socorro para as paredes de azulejo, os contornos da boca do esposo começavam a
arroxear.
A
mulher atinou a abrir a porta e sair pela casa atrás do telefone. Ligava para
João quando Antônio recobrou os sentidos. Foi com dificuldade que o homem
apoiou as mãos no piso, tentava sentar-se. Por instantes havia se perdido, não
reconhecia o lugar, menos ainda recordava o que fazia lá. Aos poucos entendeu
que se recuperava de um desmaio e estava só. Quis chamar a esposa, mas a voz
saiu fraca e pouca, quase um fio de ruído. Quase nada. Ao retornar ao banheiro,
Elisa já trazia roupas limpas para vesti-lo, o que fez rapidamente e sem parar
de falar, de perguntar, insistindo em respostas de Antônio, de preferência
coerentes.
Ele
fazia esforço, meu signo é libra, tenho um filho João e duas netas, Renata e
Rebeca, um peixe beta e um fusca vermelho 73 na garagem. Estou bem, mulher, só
tenho sede. Antônio ficou sentado nos pés da cama, mal respirava com medo de
nova vertigem. Mais aliviada, Elisa lembrou-se de ainda estar nua. Abriu duas
gavetas, pegou calcinha, sutiã e um par de meias, vestiu tudo apressadamente,
em seguida uma blusa de linho amarelo e calça jeans. Olhou no espelho, passou
os dedos pelos cabelos alinhando os fios ao meio, numa risca acostumada no topo
da cabeça, pegou a bolsa e num pulo estava ao lado do marido. Estás bem? Tens
frio? Dor? Fala alguma coisa, criatura! Sede, Elisa, só sede. Elisa já ia
buscar um copo de água, mas uma buzina estridente deteve seu passo: João está
aqui.
Vem,
homem. Vamos ao médico agora. Como de costume, Antônio foi conduzido, dessa vez
pela mão até a rua. Entrou no carro lentamente, ajudado por João, abaixa a
cabeça pai. Suado e aflito, o filho seguiu com os pais direto ao hospital.
Antônio
não atravessou a madrugada. No final daquela tarde de domingo dera entrada no
hospital e em seguida, enquanto o médico fazia os primeiros exames, outro mal
estar o fez desmaiar. Desta vez, levou mais tempo a recobrar os sentidos.
Acordou em um quarto muito iluminado, cercado por desconhecidos, enfermeiros e
médicos, e sem sentir completamente as pernas e a nitidez da visão. Queixou-se
de náusea, vomitou, sentiu dores de cabeça, dores espalhadas pelo corpo, nem de
todas deu notícias a quem o atendia. Às 23h45 teve novo desmaio e jamais voltou
a si.
Um
homem magro e alto, médico com ar de cansaço, informou a família do
falecimento, deu explicações detalhadas as que Elisa não prestou atenção,
tumor, dor, terror, amor, or, or. As palavras que lhe diziam soavam como as
badaladas de um sino pesado. E não faziam sentido. Não era o começo de uma
depressão o que Antônio tinha? Não era cansaço? Desânimo? Estresse? Era, sim.
Certeza de que era, pensou Elisa. Mas não.
*****
E
ali, sentada na ponta do sofá, diante da janela passou todos os dias que se
seguiram. Viu chuva começar, abrandar e acabar, viu sol nascer e se por, viu
estrelas e todas as faces da lua, viu o tempo girar ao redor dos próprios
ponteiros, viu vizinhos aproximarem-se da porta de entrada, baterem e
desistirem, e viu, enfim, uma nuvem branca adensar-se do outro lado do vidro,
primeiro na forma de um redemoinho descendo com fúria do céu, depois como uma
onda de espuma grossa, penetrando pelas frestas da janela e inundando a sala, a
cozinha, o banheiro, os quartos, o pátio, o bairro, a cidade, a espera, a
memória, os batimentos do coração.
O
branco da nuvem passou a limpo todos os dias, que pareciam ecos daquele domingo
sem fim. Apagou o que havia sido e o que não chegou a ser. Era tanta brancura,
que Elisa empalideceu aos poucos e seu contorno esmaeceu e o que estava dentro
fundiu-se ao que estava fora e o que ainda restou dela desapareceu na imensidão
branca.
CRÔNICAS:
3º Lugar - "Uma teoria", de Pedro Guilherme Backes de Oliveira.
Uma teoria
Esses
dias estava eu a conversar com um cachorro na rua, quando uma menina me chama a
atenção. Ela passou por mim, deu uma olhada, e começou a rir. Não entendi a
situação e questionei-a sobre o motivo do riso. A menina respondeu que era por
que eu estava conversando com um cachorro.
-
Mas e você não conversa com cachorros?
-Claro
que não, não sei falar a língua deles. – e voltou a caminhar prosseguindo com a
risada.
Todo
esse diálogo me deixou meio confuso. Achava que todo mundo conversava com
cachorros, afinal é tão gostoso, eles sempre te entendem. Resolvi então
procurar algum amigo para contar o ocorrido. Contei a história e ele riu. A
mesma risada da menina. Contei para outro; mesma coisa. E assim repetiu-se para
todos com quem conversei em seguida. Todos concordavam com a menina.
Comecei
a ficar preocupado. “Será que isso é uma doença?”. Só podia ser! Conversei com
dezenas de pessoas e todas partilhavam da mesma opinião sobre o assunto,
“Conversar com cachorros? Ridículo!”.
Procurei
então meu grande amigo Silveira, o cara mais inteligente que eu conhecia nas
proximidades. Deixei-o a par de minha teoria, que ele achou fantástica, mas me
questionou:
-
Concordo que seja um problema, mas não acha um pouco de exagero chamar de
doença?
-
De maneira alguma! Uma pessoa que ri da outra por esta ser poliglota só pode
estar doente! E deve ser contagioso, porque já virou epidemia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário