segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Textos premiados em 3 º lugar no Concurso Literário Universitário 2012

POEMAS:
3º Lugar - "A estátua", de Cecília de Souza Borba



A Estátua
 
 
Ó, estátua sem vida!
Quem habita em tua negrura?
Não sei onde acho a saída
Para esta minha amargura

Ó, estátua sem alma
Quem habita em tua dimensão?
Estou sem paz e sem calma
Perdida nesta solidão

Quem habita em ti?
Ó, estátua negra e fulgurosa
Tu és a única a me ouvir
Nestes momentos de depressão
Mas como?
Se não podes chorar e nem sorrir
Não tens nem mesmo um coração

Mesmo assim eu desabafo
Tu és minha única companheira
No caminho dos meus passos
Tu és minha amiga verdadeira
Não me inveja
Não me agride
Estás sempre em prontidão
Para que quando eu precisar,
Possa abrir meu coração

CONTOS:
3º Lugar - "Branco para todos os dias", de  Andréia Alves Pires.  


Branco para todos os dias

Cinza o dia do outro lado da janela. E úmido. Há mais de cinco horas chovia sem trégua e Elisa não cansava de olhar as gotas despencando do céu e formando poças na grama do pátio. A mulher concentrava-se nas gotas caindo, dedicava-se obsessivamente a acompanhar o trajeto da água, pois assim, bastante ocupada, não permitia brechas para lembrar. As vezes, raios desenhavam riscos no alto da tarde e quase conseguiam desviar a atenção de Elisa, que experimentava jeitos de conter o vazio, de antecipar e contornar os estragos que recordar tem o poder de fazer. Ela queria o espaço em branco por dentro. Branquíssimo. O branco tem um peso, sabia bem, capaz de sufocar e preencher o buraco sem fim que havia se espalhado pelo pensamento, pelo sangue, pela pele.
Como todos os dias, desde aquele domingo de outubro, Elisa esperava. Esperava o tempo passar, esperava reaver uma força sua que se perdeu em algum momento entre as cobertas quentes pela manhã e o desalento no fim da noite, esperava alguma forma de reencontro, uma compensação, esperava compreender a distância entre a presença e a ausência. Do que é feita essa dor que se instalou em mim?, não cansava de questionar. Queria dar o próximo passo, mas não conseguia afastar-se da janela, das gotas de chuva, não sabia mais como respirar fundo e arejar o peito, estava paralisada diante da vidraça.
*****
O domingo já ia longe, mas eles deixavam-se ficar na cama como se o mundo inteiro fosse aquela dimensão entre lençóis azuis e travesseiros estampados. Nus, estendidos um ao lado do outro, o vão curto entre os braços e as pernas dele e dela eram fronteira. De um lado, pensava ela na vida, no tempo, no encontro com aquele homem bom e honesto. De outro, ele pensava no fim, na brisa, na companhia daquela mulher segura e bonita. Pensavam, pensavam e sentiam crescer por dentro da barriga e subir pela garganta um calor conhecido, uma vontade de permanecer. No outro. Pelo outro. Com o outro. Para o que imaginavam ser o sempre.
Ela voltou-se para ele, passou a mão pelos próprios cabelos e os ajeitou atrás da orelha, sorriu antes de acarinhar a testa do companheiro, o nariz, a boca, as bochechas do companheiro. Curvou-se sobre ele e o beijou com o beijo de todos os dias, demorado e verde. Havia nos olhos dele uma tristeza de vidro que não tinha coragem de explicar nem a si mesmo. Ela percebeu, mas não quis perguntar. Ele compartilhou o beijo de todos os dias como quem vai embora de casa para jamais voltar.
Fizeram amor. Não o de todos os dias, mas o de um domingo em particular, com o cuidado e a destreza dos alpinistas experientes. Escalaram os corpos um do outro, subindo, descendo, explorando montanhas familiares com exatidão. E havia uma atmosfera de fim de festa. Não comentavam, mas sentiam-se arrumando malas.
Deitados nus, agora um sobre o outro, ele com o rosto no peito dela, arriscou: lembro de acordar no meio da madrugada para ficar olhando a tua barriga crescer, na nossa gravidez do João. Não respirava mais fundo para não te acordar, chegava com a boca bem perto do teu umbigo e dizia lá para dentro, aos sussurros, que João não se preocupasse, pois seria feliz desde o primeiro choro. Contei ao nosso menino que o amor que a gente tinha era inteiro, que havia vindo não sei de onde, mas que estava aqui quando chegamos e que... mergulhamos. Disse que a vida era assim cheia de mergulhos, para cima e para baixo, para os lados, e que valia a pena encarar todas as marés, porque vir à tona era encostar em ti. Disse que ele viesse sem medo, que a rua era perigosa, mas que a nossa casa seria sempre garantia e riso frouxo. Que viesse logo para ver o teu rosto e o meu, tão testemunhas de que existir é uma viagem infinita. Eu fiz isso.
Eu ouvia, ela disse. Muitas noites despertei com teus sussurros e o bafo úmido perto da minha pele. No início ficava assustada e curiosa com o teu jeito. Depois passei a esperar que confissões tu farias. Chegaste a contar uma história inventada de elefantes no supermercado. E para a minha barriga! Fez efeito, sabes? Até hoje o João procura as tuas palavras, nos almoços de fim de semana faz questão de estimular a tua memória, dá corda para os teus causos. É que a tua voz é mesmo música. Eu também caí nos teus contos... Noutros tempos tu cantavas embaixo da janela do sobrado onde morei, te recordas? Meu pai queria jogar em ti o xixi madrugado do penico toda vez que arranhavas "uma marca" no violão. Sempre a mesma música, né? Teria me apaixonado por ti mesmo se fosses mudo e se não tivesses o mínimo talento para a música. Teria.
Seguiu-se à conversa um longo silêncio repleto de fragmentos de história repartida. Ele acomodou-se sobre ela de forma a cobrir por completo o corpo da companheira, feito jogo de encaixe. Encostaram-se as pontas dos narizes e não ousaram dizer palavra alguma. Nos rostos de um e de outro havia o desenho de inúmeros caminhos, trilhas ao redor dos lábios e dos olhos, corredores estreitos e profundos escavados de repente pelo vento: em um dia não existiam e no outro estavam lá, irremediáveis. Sinto a tua falta com o mesmo desespero dos primeiros dias, ela confessou sem desviar os olhos dos dele. Correu o rosto para o vão do ombro da amada e respondeu com voz tremida, não quero ir, quero ficar contigo como todos os dias.
Primeiro surpresa, logo penalizada, ela segurou a cabeça do marido com as mãos em concha. Havia deslizado para fora do corpo dele e agora se ajoelhava ao redor daquele homem encolhido, repetindo baixinho que ele não iria a parte alguma sozinho, que estariam juntos até o fim. Antônio chorou. Chorou, inconsolável, nas mãos da esposa até adormecer. Elisa não entendia o pranto do marido. Nos últimos 42 anos havia visto o esposo chorar apenas três vezes e de forma muito discreta: em 1970, quando o filho do casal nasceu, quando perdeu os pais no acidente de automóvel em 1978, e na formatura do João em arquitetura há dez anos. Não que Antônio fosse um homem frio. Não era. Aprendera a ser comedido, a sentir as coisas do mundo sem transbordar, aprendera a ser equilíbrio.
Elisa perdia-se em interrogações quando Antônio acordou num pulo, sobressaltado. Ah, tive um sonho horrível Elisa, horrível. Estava exausto, preso em uma masmorra escura e fria, sozinho e com fome. Vi corpos pelo chão, gritei socorro, implorei ajuda e não apareceu uma alma para me tirar dali. Então entraram quatro homens vestidos de um jeito estranho, como os atores naquele filme de gladiadores, sabes? Esses homens não sorriam, não falavam, não estavam lá de verdade... Eles riam de mim e me jogavam pedras. Chegavam perto e gritavam barbaridades, que eu não valia a areia do chão, que eu jamais veria luz novamente, que eu era fraco e imundo, que eu morreria devagar, que perderia os pedaços até que pudesse ver o meu corpo pelo avesso. Eu tinha tantas feridas. Me sinto amarrado lá ainda, junto com o fedor, com o escuro, sozinho.
Estava magro o Antônio, os ossos do peito bem marcados sob a pele clara. Noutras épocas costumava gabar-se para as visitas das dobrinhas na parte de trás do pescoço, isso dá um mocotó de luxo, fazia graça, forçando o relevo abaixo da nuca. Elisa aconchegou o marido num abraço apertado, pediu que respirasse fundo, que ele estava bem ali na cama macia, que pesadelos são só sonhos inconvenientes, que não se impressionasse, toma aqui o teu remédio, querido. O marido abandonava-se no colo da mulher feito criança pequena, ingeriu os comprimidos sem protestar, um, dois, três, quatro bolinhas, tamanhos e cores diversas, um gole de água nos intervalos. Será que nunca mais vou dormir um sono cheio? Claro que vais, Tonho. Esquece isso e vamos conversar.
Elisa tentava bater papo, mudar a energia do marido que parecia mesmo impressionado com o sonho ruim. Banho juntos, que tal? Antônio ameaçou um sim com a cabeça e o meio sinal bastou para que sua companheira saltasse da cama e o conduzisse ao chuveiro. Era uma pluma, o Antônio. Um pingo de chuva na vidraça que o sopro faz mudar de rota. E Elisa assoprava o marido, ao redor dos ouvidos, tentando produzir as reações habituais, certeiras. Havia decifrado tanto daquele corpo... sabia bem o seu próprio, mas aquele corpo tinha gosto especial em tatear, ainda. Havia visto o tecido que o cobria mudar de texturas e de odores, acompanhou marcas que apareceram, sumiram, tornaram a aparecer. Ultimamente ele se queixava de muitas dores: na cabeça, no estômago, nas costas principalmente. Nos últimos meses ele tinha muitas aftas, redondas e ardidas, tinha pontos mínimos na língua e também grandes ulcerações, ilhas brancas, um arquipélago particular sob o céu da boca.
Ela ligou o chuveiro. Sorriu para o homem grisalho a sua frente, que lhe sorriu de volta. Os cabelos cinza escorriam pela testa de Antônio, que outra vez se deixava levar. Elisa ensaboou, massageou, fez cócegas na cintura do marido, esfregou-se nele, experimentou penteados com xampu, riscou corações em espuma nos braços do companheiro, disse que o queria bem, o queria perto, completo, fundo, já. A água descia ombros abaixo em direção ao ralo enquanto eles faziam amor.
Antônio passou mal ao enxugar-se. Frio, dor aguda na cabeça, náusea, pernas trêmulas. A vertigem e o piso gelado. Elisa correu a reanimar o marido, sua toalha esquecida no chão do box, acorda querido, por favor, abre os olhos. Nada. Nenhuma reação. Segundos eternos e Elisa chorava sacudindo o marido, gritava socorro para as paredes de azulejo, os contornos da boca do esposo começavam a arroxear.
A mulher atinou a abrir a porta e sair pela casa atrás do telefone. Ligava para João quando Antônio recobrou os sentidos. Foi com dificuldade que o homem apoiou as mãos no piso, tentava sentar-se. Por instantes havia se perdido, não reconhecia o lugar, menos ainda recordava o que fazia lá. Aos poucos entendeu que se recuperava de um desmaio e estava só. Quis chamar a esposa, mas a voz saiu fraca e pouca, quase um fio de ruído. Quase nada. Ao retornar ao banheiro, Elisa já trazia roupas limpas para vesti-lo, o que fez rapidamente e sem parar de falar, de perguntar, insistindo em respostas de Antônio, de preferência coerentes.
Ele fazia esforço, meu signo é libra, tenho um filho João e duas netas, Renata e Rebeca, um peixe beta e um fusca vermelho 73 na garagem. Estou bem, mulher, só tenho sede. Antônio ficou sentado nos pés da cama, mal respirava com medo de nova vertigem. Mais aliviada, Elisa lembrou-se de ainda estar nua. Abriu duas gavetas, pegou calcinha, sutiã e um par de meias, vestiu tudo apressadamente, em seguida uma blusa de linho amarelo e calça jeans. Olhou no espelho, passou os dedos pelos cabelos alinhando os fios ao meio, numa risca acostumada no topo da cabeça, pegou a bolsa e num pulo estava ao lado do marido. Estás bem? Tens frio? Dor? Fala alguma coisa, criatura! Sede, Elisa, só sede. Elisa já ia buscar um copo de água, mas uma buzina estridente deteve seu passo: João está aqui.
Vem, homem. Vamos ao médico agora. Como de costume, Antônio foi conduzido, dessa vez pela mão até a rua. Entrou no carro lentamente, ajudado por João, abaixa a cabeça pai. Suado e aflito, o filho seguiu com os pais direto ao hospital.
Antônio não atravessou a madrugada. No final daquela tarde de domingo dera entrada no hospital e em seguida, enquanto o médico fazia os primeiros exames, outro mal estar o fez desmaiar. Desta vez, levou mais tempo a recobrar os sentidos. Acordou em um quarto muito iluminado, cercado por desconhecidos, enfermeiros e médicos, e sem sentir completamente as pernas e a nitidez da visão. Queixou-se de náusea, vomitou, sentiu dores de cabeça, dores espalhadas pelo corpo, nem de todas deu notícias a quem o atendia. Às 23h45 teve novo desmaio e jamais voltou a si.
Um homem magro e alto, médico com ar de cansaço, informou a família do falecimento, deu explicações detalhadas as que Elisa não prestou atenção, tumor, dor, terror, amor, or, or. As palavras que lhe diziam soavam como as badaladas de um sino pesado. E não faziam sentido. Não era o começo de uma depressão o que Antônio tinha? Não era cansaço? Desânimo? Estresse? Era, sim. Certeza de que era, pensou Elisa. Mas não.
*****
E ali, sentada na ponta do sofá, diante da janela passou todos os dias que se seguiram. Viu chuva começar, abrandar e acabar, viu sol nascer e se por, viu estrelas e todas as faces da lua, viu o tempo girar ao redor dos próprios ponteiros, viu vizinhos aproximarem-se da porta de entrada, baterem e desistirem, e viu, enfim, uma nuvem branca adensar-se do outro lado do vidro, primeiro na forma de um redemoinho descendo com fúria do céu, depois como uma onda de espuma grossa, penetrando pelas frestas da janela e inundando a sala, a cozinha, o banheiro, os quartos, o pátio, o bairro, a cidade, a espera, a memória, os batimentos do coração.
O branco da nuvem passou a limpo todos os dias, que pareciam ecos daquele domingo sem fim. Apagou o que havia sido e o que não chegou a ser. Era tanta brancura, que Elisa empalideceu aos poucos e seu contorno esmaeceu e o que estava dentro fundiu-se ao que estava fora e o que ainda restou dela desapareceu na imensidão branca.
 


 
 CRÔNICAS:
 
3º Lugar - "Uma teoria", de Pedro Guilherme Backes de Oliveira



Uma teoria

                Esses dias estava eu a conversar com um cachorro na rua, quando uma menina me chama a atenção. Ela passou por mim, deu uma olhada, e começou a rir. Não entendi a situação e questionei-a sobre o motivo do riso. A menina respondeu que era por que eu estava conversando com um cachorro.
                - Mas e você não conversa com cachorros?
                -Claro que não, não sei falar a língua deles. – e voltou a caminhar prosseguindo com a risada.
                Todo esse diálogo me deixou meio confuso. Achava que todo mundo conversava com cachorros, afinal é tão gostoso, eles sempre te entendem. Resolvi então procurar algum amigo para contar o ocorrido. Contei a história e ele riu. A mesma risada da menina. Contei para outro; mesma coisa. E assim repetiu-se para todos com quem conversei em seguida. Todos concordavam com a menina.
                Comecei a ficar preocupado. “Será que isso é uma doença?”. Só podia ser! Conversei com dezenas de pessoas e todas partilhavam da mesma opinião sobre o assunto, “Conversar com cachorros? Ridículo!”.
                Procurei então meu grande amigo Silveira, o cara mais inteligente que eu conhecia nas proximidades. Deixei-o a par de minha teoria, que ele achou fantástica, mas me questionou:
                - Concordo que seja um problema, mas não acha um pouco de exagero chamar de doença?
                - De maneira alguma! Uma pessoa que ri da outra por esta ser poliglota só pode estar doente! E deve ser contagioso, porque já virou epidemia.  
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