POEMAS:
1º Lugar: DESTAQUE
LITERÁRIO - "Demônios", de Robério Campos Costa.
DEMÔNIOS
Demônios não são espectros.
Demônios são nossos medos,
nossos segredos,
nossos pensamentos.
Demônios são nossos
sentimentos,
nossos ódios, nossas angustias,
nossas tristezas.
Demônios
não são externos.
Demônios
são nossas entranhas,
nossas
intimidades,
nossas
saudades,
Demônios
são nossas vontades,
nossas fomes, nossas sedes,
nossos quereres.
Demônios não são concretos.
Demônios são nossos sonhos,
nossos pesadelos,
nossas fantasias.
Demônios são nossas companhias
de nossas noites, nossas
tardes,
nossos dias.
Demônios
não são abstratos.
Demônios
são nossos carrascos,
nossos
algozes,
nossas
grades.
Demônios
são nossos quadros,
nossas
formas, nossos reflexos,
nossos
retratos.
CONTOS:
1º Lugar - "Feliz aniversário", de Lilian Gonçalves de Andrade.
Feliz
Aniversário
Com apenas vinte e três anos
desencarnei. Não quero, aqui, relatar minúcias de minha trajetória e, tampouco,
o que me levou a cruzar a linha tênue e misteriosa que separa a vida da morte.
Hoje é um dia muito importante: o
aniversário de minha mãe. Consegui permissão para ultrapassar a fronteira de
vidro. Rompê-la. O mesmo portal pelo
qual entrei anos atrás...
Para isso eu deveria sentar-me no lugar
mais aconchegante possível e fixar o pensamento nas pessoas que eu quisesse
rever. Olhos fechados, no meio da clareira que separava o jardim do riacho.
Pensei em papai. Imediatamente, senti que estava me movendo –embora,
fisicamente, não estivesse. O susto que a sensação experimentada me causou fez
com que eu, instintivamente, abrisse meus olhos e percebesse o todo real ao meu
redor.
Nova tentativa. Agora, já conhecia parte
do que seria vivenciado neste dia tão especial. Olhos cerrados. Postura e lugar
aconchegantes. Sensação de movimento; queda; vôo. Pensamento fixo.
Uma imagem apareceu à minha frente:
papai estava sentado junto a alguns homens, bebendo. Era um senhor e sua
aparência estava muito diferente daquela que eu lembrava. Corri meus olhos em
volta do bar no qual eles se encontravam: novembro de 2007. Dois mil e sete?
Não podia acreditar... faleci em 1995. O que aconteceu comigo durante todo esse
tempo?
Papai falava pouco. Talvez porque já
tivesse excedido os limites permitidos de álcool no sangue. Enfim, havia se
transformado em alguém triste, de olhos opacos e cabelos brancos como a neve.
Fiquei por longos minutos observando seus monólogos. Era uma estranha sensação.
Parecia que eu estava assistindo televisão, pois não fazia parte da cena,
diretamente. Via tudo de um viés recortado, mas que se abria mais ou menos, de
acordo com a minha vontade. Meus olhos eram a lente da câmera que filmava os
acontecimentos. Quem escolhia o ângulo era eu. Porém, estava ciente: deveria
respeitar o tempo que me foi estipulado. O melhor seria deixá-lo e, se houvesse
tempo, regressar.
Pensei na casa em que minha família
vivia e, como em um passe de mágica, ela se fez realidade. Mas a magia se
desfez quando me deparei com a sombra e sujeira do lugar. Uma casa vazia e
empoeirada. Subi as escadas e fui até o meu antigo quarto. Encontrei tudo no
mesmo lugar e fui surpreendida por uma nostalgia. Reconheci que era a saudade
da vida que eu tinha e que me foi, injustamente, roubada.
Meus livros na estante, o tapete felpudo
que um dia foi branco e os ursos e bichos de pelúcia que eu costumava ganhar de
meus fãs. Todas essas lembranças me entristeceram. Tive muita saudade e vontade
de estar viva. Fui, inevitavelmente, atingida por algumas lembranças. Mas não
eram lembranças. Eram visões: fatos que eu não vi acontecerem, mas dos quais
fui a personagem central... a minha morte.
Vi meu corpo sendo transportado em uma
fria maca de metal. Os médicos e muitas pessoas – que me pareceram ser
enfermeiros, ou algo assim – também surgiam de maneira crescente. Conversavam
em voz baixa. Cochichos. Rostos surpresos.
Outra cena foi a de quando faziam as
fotografias. Um rapaz do maior jornal local, que muitas vezes havia me
fotografado em grandes eventos, lamentava juntamente àquele homem do qual eu
era marionete. Ele me virou de bruços e colocou um pequeno papel com os dizeres
entrada da bala; depois, no meu peito, as palavras saída da bala.
Os choros que eu ouvi me fizeram tapar os ouvidos e, decidida a me livrar
daquela angústia que desconhecia, fixei o pensamento em meus irmãos.
O tempo estava se esgotando, eu bem
sabia. Meus irmãos estavam juntos. Cada um em uma parte da casa, que era triste
e sem vida. Ouvi alguns latidos vindos da rua e recordei do meu querido amigo.
Lá fora, de onde vinham os latidos, pensei que encontraria o meu cão de estimação,
mas ele não estava. O de agora era um cão desconhecido, acho que da vizinhança.
E o meu Sun? Não sei para onde ele foi. Teriam se livrado dele?
Recebi, intuitivamente, um aviso:
precisava voltar. A lei da relatividade, novamente, invadiu-me. O tempo passa
rápido demais quando estamos fazendo aquilo que gostamos. Era assim no tempo
das minhas apresentações. Escolher o figurino, cuidar de minha aparência,
hidratar-me com muita água... ensaiar. E, por fim, no dia esperado, tudo se
passar tão rápido!
Enfim, precisava correr –
figurativamente e, por conta do costume de estar viva, pensei assim. Lembrei-me
de mamãe. Logo em seguida escutei o som do chuveiro e, após, senti o banheiro
inteiro perfumado. Apesar do tempo que eu soube que se passou, mamãe ainda usava
os mesmos perfumes de outrora. Sem que eu pudesse controlar as minhas emoções,
chorei muito. Meu pranto cheio de saudade fugia do meu controle. Queria a minha
mãe. Queria que ela soubesse que eu a amava. Hoje era o seu dia e ela parecia
tão triste. Como se alheia a qualquer pequeno prazer que a vida lhe pudesse
oferecer. Como se cumprindo apenas as obrigações de estar viva. Mamãe não era
mais a mesma. Nada era igual. Tudo havia se rompido: tanto para eles, quanto
para mim.
Recordei-me de várias cenas da minha
infância e, nelas, o perfume de minha mãe era uma constante: minha mãe dançando
comigo nos braços, rindo muito e usando um colar de ouro, com pequenos detalhes
em pérola – presente de papai. Mamãe levando-me à escola pela primeira vez...
Mamãe correndo, brincando... mamãe sorrindo...
Vapores no banheiro... mamãe estava
enrolada em um roupão azul. Pouquíssimo ainda se podia enxergar. Ela usava o
secador de cabelos e eu sentia o cheiro de seu xampu. Estava com tanta saudade!
Quisera muito ficar ali com todos eles, ainda que não me vissem... pelo menos,
poder ficar, digamos, conectada a eles. Não sei como, depois desta
experiência, poderia regressar sozinha.
Algum tempo depois, o secador diminuiu a
intensidade do vapor no ar, ficando apenas os resquícios nos três grandes
espelhos que enfeitavam a parede do extenso balcão-armário. Agora que o
observava, constatei que ele seguia os mesmos padrões de meu apurado e exigente
gosto: devia ter mais de dois metros de comprimento e todo em mármore. Dali
saía uma bonita pia e, ao redor dela, ou seja, distribuídos ao longo de seus
dois metros, muitos perfumes e cremes. Meu perfume favorito estava ali. Na
parede, logo acima de toda a extensão do armário, três grandes espelhos,
divididos apenas por delicadas lâmpadas – que simulavam uma espécie de espelho
de camarim...
O vapor do banho retido no espelho
estava perfeito, no ponto. Mentalmente, consegui escrever nele Feliz
aniversário, mamãe! Amo você! mas, nesse momento, ela olhou para trás.
Disse o meu nome e começou a chorar. Creio que sentiu o meu amor, minha
presença. Direcionou-se para a pia, onde lavou o rosto. Enquanto isso, cada uma
das letras foi tornando-se mais e mais desfeita. Infelizmente, a mensagem no
espelho, mamãe não chegou a perceber.
Vi uma luz lilás, por pensamento. Esse era o sinal
de que, em breve, não estaria mais conectada ao meu velho plano. Eu
estava mesmo cansada, perdendo as forças. Precisava ir, desligar a câmera.
Senti uma respiração quente em minha mão
que repousava no chão, servindo-me de apoio. Essa respiração foi seguida de
outra e outra... Olhei para trás e havia mais do que a clareira, o riacho ou a
bela natureza que me cercava em minha presente morada. O meu amigo estava ali.
O Sun viera me fazer companhia. Pelo resto de nossas eternidades.
CRÔNICAS:
1º Lugar - "Milagres de guarda-chuvas", de André Lima Barros.
MILAGRES DE GUARDA-CHUVA
Segunda
minha formação religiosa, uma frase bastante adequada para começarmos uma
conversa com o Nosso Criador, uma oração, é “Querido e Amado Pai Celestial.” A
partir daí, agradecemos pelas inúmeras bênçãos recebidas e solicitamos a Ele
tudo aquilo que desejamos que aconteça em nossa efêmera existência terrena. Não
é exatamente uma regra, uma reza, apenas uma espécie de convenção inofensiva e,
logo, unanimemente aceita e utilizada.
Eu sou
incorrigível, tenho que confessar. Já perdi as contas de quantos guarda-chuvas
eu deixei espalhados por esse mundo a fora. E acreditem, é sempre a mesma
história: está chovendo, eu saio de casa com o guarda-chuva, daí o tempo abre
(o que vem ocorrendo cada vez mais frequentemente nesses últimos tempos) e eu, então,
acabo esquecendo de pegar e de levar de volta para casa o bendito do
guarda-chuva. Muitas vezes eu os recupero, ou porque alguém bondosamente guarda-o
para depois me entregar ou eu mesmo lembro onde deixei esse artefato criado há
3400 anos lá na Mesopotâmia, onde hoje é o Iraque (e um dos poucos lugares em
que eu nunca esqueci o dito cujo), e volto lá para apanhá-lo. Mas quase sempre,
infelizmente, meu guarda-chuva desaparece para todo sempre. Amém.
Meu
consolo é que eu não sou o único. Quem já não deixou, esqueceu o seu guarda-chuva
no ônibus, na casa da tia, no taxi, na faculdade, no trabalho, no banco da
praça, ...? Aposto que a grande maioria dos que estão lendo este texto já o fez
mais de uma vez. E o fato mais curioso e também recorrente desse lapso coletivo
de memória é que a gente, quase sempre, só volta a lembrar do nosso guarda-chuva
quando volta também a chover. E é quando, amigo leitor, vem à tona a questão
mais chata e cansativa dessa história: onde eu botei o meu guarda-chuva?
Tenho
certeza de que se o nosso guarda-chuva fosse um ser-vivo, com raciocínio,
sentimentos ou alguma relação afetiva para conosco, ele ficaria muito chateado
com nossa sistemática negligência a ele, e poderia até se recusar a nos servir
nos dias tempestuosos. Mas ele, o guarda-chuva, não passa de uma junção muito
bem arquitetada de lona, plástico e alumínio e, portanto, nunca se magoa
conosco e nos serve involuntariamente sempre que assim o desejamos.
Todavia,
se fosse apenas os guarda-chuvas que nós nos restringíssemos a nos lembrar
apenas nas horas de sufoco, o quão melhores seres-humanos nós todos não seríamos?!
Há
pessoas que nos vem à cabeça somente quando precisamos delas. Se tudo vai bem,
elas simplesmente entram para aquela lista incondicional dos plenamente dispensáveis,
um tipo de depósito de bugigangas que ocupa boa parte da nossa memória. Mas
quando a coisa aperta, quando a dor de barriga reaparece ou quando o tempo
fecha, pedimos, prontamente e sem nenhum constrangimento, o seu auxílio e socorro.
Isso, quando não somos nós a tal pessoa tratada como um mero guarda-chuva por
algum avoado de plantão.
Contudo,
que ninguém se considere um canalha por fazer isso. Todos, sem exceção, o fazemos
ou já fomos por alguém assim tratados! É bem normal, mas nem por isso pode ser
considerado agradável. Nossos amigos, os
verdadeiros, não poderiam jamais ser tratados como guarda-chuvas. Os nossos pais,
que tanto se dedicaram e se sacrificaram por nós, também não. Assim como nossos
irmãos, nosso próximo, resumindo, guarda-chuvas podem ser tratados como
guarda-chuvas, seres-humanos, de um modo geral, não podem.
No
entanto e acima de tudo, Deus não pode, nem por brincadeira, ser tratado como um
guarda-chuva. Ele, definitivamente, não deve ser procurado somente nos dias
difíceis, de tempestade. Ele é nosso Amigo mais fiel, nosso Pai Celestial, nosso
Irmão mais amoroso e nosso Próximo mais chegado e deve, por isso, estar conosco
nos dias de sol, de frio, de calor ou de vento para estar também ao nosso lado
nos dias de chuva.
Porém, o
que realmente me impressiona e que me motivou a discorrer sobre este analógico
tema é que há pessoas (ateus ou crentes devotos) que fazem isso, comentem esse
equívoco mesquinho, com tanta naturalidade e freqüência, que deveriam começar
as suas orações mais fervorosas (aquelas que só proferimos quando o último
recurso pensável seria uma intervenção divina, um milagre) da seguinte maneira:
Querido e amado guarda-chuva, o tempo fechou, preciso de ti. Apareça.
O mais
extraordinário e admirável de tudo é que Ele, não raramente, aparece mesmo.
Divino!
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